domingo, novembro 15, 2009

o fantasma de chernobyl

15 de Novembro de 2009
À primeira vista, nada realmente impressiona, tudo parece comum: florestas, vales, colinas e pequenas casas de campo à beira da estrada me confundem com a sensação de já haver visto tudo isto antes. Mas a poucos metros deste cenário de tranquilidade no norte da Ucrânia, no Leste Europeu, cercas de arame farpado, militares e placas sinalizando perigo de radiação me avisam que estou prestes a entrar

em outro mundo. É a chamada “The Zone” (ou “A Área”). Um termo vindo de um romance de ficção científica da era soviética, escrito mais de uma década antes do acidente na Usina Nuclear de Chernobyl, em 1986, quando rios, plantações, florestas, animais e seres humanos foram envenenados com enormes quantidades de material radioativo. Um olhar um pouco mais aproximado revela que estas pequenas casas de campo, ou o que restou delas, são o testemunho calado de uma enorme tragédia ocorrida há 23 anos.
Uma barricada de aproximadamente 800 soldados assegura que o resto do mundo não tenha contato com esta área de 2,2 mil quilômetros quadrados ao redor da usina, que foi totalmente desativada em dezembro de 2000. Em meio a um silêncio quase absoluto, é difícil acreditar que este local, hoje considerado apenas um depósito de detritos nucleares, já tenha abrigado um dos maiores orgulhos tecnológicos da então União Soviética e que seu entorno tenha sido o lar de mais de 120 mil pessoas.
Estradas tortuosas e aparentemente abandonadas cortam o vazio. Nos campos, surgem “cemitérios de metal”, que deixam à mostra os esqueletos contaminados de caminhões, tratores, helicópteros e outras máquinas usadas durante os trabalhos de estabilização de um dos reatores de Chernobyl que, após erros num teste de rotina, explodiu e provocou o que ficou conhecidocomo o pior acidente nuclear e o maior desastre industrial da história da humanidade. Uma enorme explosão que liberou 100 vezes mais radiação que as bombas jogadas em Hiroshima e Nagasaki, no Japão, no final da Segunda Guerra Mundial.
Enfim, chegamos à cidade que um dia já foi o maior centro urbano dessa região da Ucrânia. Construída em 1970 para abrigar 48 mil pessoas, a maioria funcionários da usina, Pripyat é hoje uma cidade fantasma. Prédios residenciais e administrativos, escolas, centros de recreação, hospitais e um pequeno parque de diversões: todos foram abandonados de improviso 36 horas depois do acidente, quando um comboio de 1,2 mil ônibus foi tardiamente enviado para evacuar a população que, até aquele momento, não havia sido informada sobre o perigo que estava correndo depois de quase 2 dias de exposição a altíssimos níveis de radiação. Muitos morreriam nos anos seguintes. Oficialmente, 56
mortes foram diretamente ligadas à explosão do reator. No entanto, não há um número certo de pessoas
fala-se em milhares em todo o Leste Europeu – que podem ter sido contaminadas.
Andando pelas ruas abandonadas de Pripyat é difícil ver o topo dos prédios. A poluição atômica parece não ter afetado a natureza. Árvores crescem livres, praticamente unindo as construções à própria floresta. Tenho a impressão de ser o último ser humano vivo na Terra e me emociono ao perceber que ando dentro da carcaça abandonada de um terrível incidente.
Meu coração se comove ao constatar que o fim de inúmeras vidas começou naquele lugar, na quela madrugada do dia 26 de abril de 1986.Pela janela do carro vejo uma enorme estrutura de cimento escurecido rodeada por enormes torres de eletricidade. Sou advertido de que, daquele ponto em diante, não poderia mais fotografar. “Todo país tem seus segredos”, me diz Yuri, um funcionário do alto escalão administrativo que nos está guiando. Mas eu, como fotógrafo de guerra, tenho o péssimo hábito de me interessar demais por segredos. Poucos minutos depois, me vejo em frente de uma das maiores estruturas que já vi em toda minha vida. Um colosso de 1,1 milhão de toneladas, heroicamente construído em condições extremas. Nos primeiros meses após a explosão, um ser humano não suportaria mais de 3 minutos de exposição à radiação vinda do reator destruído. Mesmo assim, 800 mil jovens soldados de todas as partes da União Soviética (ou “liquidadores”, como ficaram conhecidos) foram involuntariamente convocados para erguer essa triste estrutura de concreto e aço que aprisiona dentro de si 180 toneladas de lava radioativa que, estima-se, continue queimando nos próximos 2 mil anos.
Apesar do alto risco de contaminação por radioatividade, muitos dos habitantes das comunidades próximas à Usina Nuclear de Chernobyl se recusaram a ser evacuados de suas casas ou retornaram ilegalmente com o passar do tempo. Nas últimas 2 décadas, esta população, predominantemente composta por idosos solitários, foi reduzida a não mais que 400 pessoas.
Pelas ruas das vilas desertas, com o peso de sentimentos confusos, as cabeças se abaixam e a vista sempre fita o asfalto gasto. Alcoolismo, desemprego e até loucura: o abandono e o isolamento podem ser notados nos olhos pequenos e lacrimosos daqueles que, ainda hoje, enfrentam as autoridades para não serem expulsos de suas próprias casas.
E mesmo que houvesse médicos, enfermeiros e outros profissionais dispostos a arriscar a própria saúde para tratar diariamente de pacientes idosos vivendo nessa área de exclusão, o governo ucraniano, atravessando hoje uma dura crise econômica, dificilmente poderia dispor de recursos para manter tal estrutura.
Me deparo com Lydia Blazhko, uma senhora de 70 anos, que naquele dia estava sendo transferida para um apartamento construído com dinheiro público na periferia de Kiev, a capital do país, localizada a 120 quilômetros de Pripyat. “Meus filhos, meu marido e toda minha família estão enterrados no terreno de minha casa. Se eu morrer fora daqui, meu corpo e minha alma não terão nenhum valor”, lamentava.
Folha Universal / Por André Liohn, de Pripyat (texto e fotos)

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