quarta-feira, abril 14, 2010

Crônica de uma tragédia anunciada

Todo ano, ao menos duas ou três vezes, abate sobre o Rio de Janeiro os mesmos problemas com chuvas que transtornaram a cidade essa semana. As imagens variam de intensidade, porque nem todas essas chuvas possuem o mesmo volume; mas acabam sendo variações daquelas que, para os cariocas, se tornaram incômodos lugares-comuns: ruas que se tornam rios, barrancos que despencam, carros desordenados sobre calçadas, pessoas ilhadas em pequenas ilhotas de concreto.

Sempre, todo ano, toda chuva forte, um inventivo cidadão improvisa um barco. O carioca ri dessa mesma piada sempre, mas é um sorriso cansado. O carioca, exausto das mesmas imagens, precisa de outro motivo para rir, precisa admirar outras soluções inventivas para outros problemas. O problema da chuva já devia estar parcialmente solucionado.
As administrações públicas variam tanto quanto as pessoas que ocupam seus os cargos executivos: cada uma tem sua personalidade, sua ênfase e seu senso de direção. O que elas têm em comum é um apelo ficcional que se materializa sempre nas preocupações da equipe de relações públicas, nos assessores de imprensa. O homem público, que ocupa um cargo importante, é sempre uma mistura de técnico de futebol e apresentador de auditório. É a natureza da política. Ele precisa esconder sua ineficácia administrativa sobre a máscara da narrativa fantasiosa; e tudo que conquista se torna o ponto máximo de um enredo épico, de proporções titânicas. Em um mundo saturado de informações e de narrativas, os políticos argutos sabem que mais do que os fatos, é a maneira como os expõem que os colocam em evidência e em destaque. A informação bruta, mesmo que extraordinária, sem o enlevo encantatório do adjetivo, da retórica, provocam tédio abismal.
É por isso que uma chuva torrencial se torna uma "tragédia sem proporções" e uma "catástrofe sem igual". É uma forma de encantar o cidadão. Se é uma tragédia, não há como combatê-la; se é uma catástrofe, foge da competência humana. Errado. Os pontos da cidade que mais sofreram com enchentes são os mesmos pontos de sempre; as encostas que ameaçaram cair e deslizar, as mesmas de sempre; a população ilhada esteve isolada nos mesmos pontos críticos das mesmas vezes. Diante de uma chuva como a dessa semana, questões críticas surgirão.
Sempre. O problema é que novos pontos críticos devem surgir na cidade, e não os mesmos capítulos que, de governo em governo, são palcos das cenas que afligem o carioca.
As autoridades sabem, por experiência, onde podem acontecer os maiores focos críticos porque esses pontos da cidade nunca foram devidamente atacados com uma estratégia administrativa adequada. Se há um problema de escoamento de água tão crítico sempre nos mesmos pontos, a prefeitura e o governo do Estado devem intervir nesse ponto. Um exemplo: há décadas a Praça Mauá torna-se um caos com qualquer chuva forte. Décadas. Toda chuva forte, repetem-se as mesmas imagens. Não é pedir o impossível; é clamar pelo bom senso. Uma analogia: se sempre que chove em um canto do corredor de um prédio surge uma goteira, conserta-se, se faz uma obra; se toda chuva forte a goteira surge e o síndico diz que é uma tragédia e não faz nada, é descaso, cinismo, falta de responsabilidade.
Cobrar que uma chuva torrencial como a que afligiu o Rio essa semana passe sem problemas é um delírio. O que incomoda, o que cansa, e o que não convém, é desejar que o cidadão se encante com uma narrativa de catástrofe que não o ilude mais. Se os serviços de meteorologia apontaram para chuva forte, onde está a estratégia da prefeitura para se deslocar aos pontos críticos que sempre causam transtorno? As autoridades deveriam estar lá antes da situação se tornar calamitosa. Se a população já sabe de cor onde os problemas se encontram, o governo deveria ser menos reativo e mais ativo e audacioso e se antecipar aos problemas. E uma vez estabelecido os problemas, solucioná-los. Administrar o Rio de Janeiro é manipular um cobertor curto: haverá sempre um ponto descoberto. Mas que seja outro ponto: se as autoridades não fizerem obras sérias para o escoamento, a próxima chuva forte será a mesma estória repisada, crônica anunciada, que querem que a população pense como trágica e inescapável, mas que são, no fundo, combatíveis desde que com uma estratégia adequada e bem pensada.
O Rio de Janeiro está em evidência: Copa do Mundo, Pré-Sal, Olimpíadas. Políticos, movimentem-se.

Terra Magazine / Vinicius Jatobá é jornalista cultural e mestre em Estudos de Literatura pela PUC-Rio. Colaborou em vários suplementos e revistas, e atualmente escreve sobre livros em jornais.

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